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Ver todos30 | abril | 2020
Fato do Príncipe
O presente artigo visa abordar uma das questões mais comentadas do momento, tendo em vista situação atual da pandemia do COVID-19 e seus impactos nas relações laborais, especialmente quanto à rescisão contratual por força maior e à aplicabilidade da tese do Factum Principis (espécie da força maior), a partir da análise do art. 486 da CLT, além do disposto nos arts. 501, 502 e 503 da CLT.
A expressão “Fato do Príncipe” normalmente é utilizada no Direito Administrativo, ao tratar dos contratos administrativos e da viabilidade jurídica de sua alteração. Em suma, é o ato administrativo realizado de forma legítima, mas que causa impactos nos contratos já firmados pela Administração Pública. Celso Antônio Bandeira de Mello (2009)¹ explica que consiste em “agravo econômico resultante de medida tomada sob titulação diversa da contratual, isto é, no exercício de outra competência, cujo desempenho vem a ter repercussão direta na economia contratual estabelecida na avença”.
Fato do Príncipe é, de acordo com os ensinamentos de Diogo Moreira Netto (2009)² uma ação estatal de ordem geral, que não possui relação direta com o contrato administrativo, mas que produz efeitos sobre este, onerando-o, dificultando ou impedindo a satisfação de determinadas obrigações, acarretando um desequilíbrio econômico-financeiro. Portanto, para o Direito Administrativo, então, o acontecimento do chamado Fato do Príncipe pode ensejar alteração do contrato administrativo, ou mesmo sua rescisão.
Por outro lado, tal expressão também é utilizada no Direito do Trabalho, de maneira que que o legislador trabalhista dispõe sobre a responsabilidade pelo pagamento de indenização pelo governo responsável, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei, resolução ou decreto que impossibilite a continuação da atividade (art. 486, caput da CLT).
Assim, no âmbito do Direito do Trabalho, para ter-se caracterizado o Fato do Príncipe, é necessário, a existência de quatro requisitos, quais sejam, imprevisibilidade do evento, sua irresistibilidade, inexistência de concurso direto ou indireto do empregador no acontecimento e necessidade de que o evento afete ou seja suscetível de afetar substancialmente a situação econômico-financeira da empresa, diante da análise dos artigo já mencionados no início do artigo. Ora, é óbvio que o conceito clássico do Direito Administrativo não se encaixa perfeitamente no conceito do Direito do Trabalho e por isso há previsão expressa na CLT a respeito, de forma a tratar de uma responsabilidade extracontratual da administração pública em relação ao seu ato que impacte substancialmente na realidade jurídica e econômica do empregador.
De plano, entendo viável a defesa da teoria do Factum Principis às rescisões dos contratos de trabalho (na atual pandemia do COVID-19), em que pese a maioria das opiniões jurídicas em sentido contrário, de modo que vislumbro desde já uma possível tendência do Poder Judiciário na refutação desta tese.
Cumpre dizer que um dos pilares para a aplicação desta posição jurídica, bem como para a aplicação da força maior e seus reflexos nas rescisões contratuais, é que deve necessariamente existir a paralisação das atividades empresariais, imposta por ato da autoridade pública, temporária ou definitiva, ou seja, não basta a mera redução da atividade econômica. Contudo, a meu ver, é aplicável a tese para encerramento da empresa como um todo, ou de alguns de seus estabelecimentos, sendo cabível para aquela gama de trabalhadores da unidade encerrada.
Ademais, ressalte-se que o art. 486 da CLT desautoriza o não pagamento de nenhuma verba ao empregado dispensado. Apesar das correntes doutrinárias, entendo que, neste caso, assim como na hipótese do art. 502, II da CLT, cabível tão somente a indenização de 40% do FGTS, ou seja, o empregador não teria a obrigação de arcar com a indenização do FGTS, de forma que tal programa foi instituído a fim de substituir a indenização da estabilidade decenal, a qual se refere o artigo da força maior da CLT.
O sistema vigente, quando da redação dos arts. 502 e 486 da CLT, refere-se à indenização da estabilidade decenal, substituída pelo regime do FGTS na Constituição de 1988, nas hipóteses de contrato por prazo indeterminado e quando não há estabilidade. Importante salientar que, neste caso, também não há a figura do aviso prévio, uma vez que a rescisão se dá por força maior, ou seja, ato inevitável e imprevisível, o que não comporta aplicação do aludido instituto.
Assim, sem maiores discussões a respeito de quais verbas seriam devidas (indenização), é correto afirmar que a corrente majoritária defende que apenas a indenização do FGTS seria afetada. Pois bem, o chamado Fato do Príncipe, disposto no art. 486 da CLT, consiste, resumidamente, em um ato do Estado que repercuta em uma consequência financeira, a qual por sua vez deve ser imprevisível e atinja diretamente as empresas. Importante destacar, ainda, que não necessariamente precisamos estar diante de um ato ilícito da administração pública, já que o Estado também responde pela prática de seus atos lícitos.
Não obstante, o art. 486 da CLT traz alguns conceitos que precisam ser analisados individualmente, vejamos:
Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
O artigo em comento dispõe que a paralisação imposta pelo ato da autoridade do Estado pode ser temporária ou definitiva. Destarte, tal paralisação, como já exposto, deve ser causada por um ato do Estado, entendendo-se aqui como autoridade municipal, estadual ou federal, de forma que impossibilite a continuação da atividade e, devendo a indenização ficar a cargo da autoridade responsável.
Ora, diante da análise do atual cenário, é plenamente possível vislumbrar que, por meio de um ato do Estado, as atividades estejam paralisadas, ainda que de forma temporária. Ressalte-se que, para a aplicação desta teoria, é fundamental que a empresa afetada seja impossibilitada de continuar suas atividades, isto é, deve existir aqui a paralisação, temporária ou definitiva, da atividade empresarial. Logo, se a empresa apenas dispensar alguns de seus empregados com o objetivo de redução de custos, a respectiva teoria não se aplica.
Pois bem, a discussão mais profunda e complexa ainda está por vir. Cabe aqui uma indagação, a respeito da atitude do poder público de paralisar temporariamente algumas atividades (note bem, algumas atividades). Neste caso, é possível enquadrar-se na responsabilidade prevista no art. 486 da CLT ?
É certo que inúmeros estudiosos do Direito do Trabalho entendem que não, sob o fundamento de que não se trata de ato discricionário, mas sim de ato vinculado da administração pública. Ademais, pressupõe-se que o ato foi direcionado a interesse geral da coletividade (interesse público primário), não sendo assim direcionado a um determinado setor, e que a administração estaria agindo em estado de necessidade, o que romperia o nexo causal.
Com exceção do último argumento, por sinal bastante sedutor, os demais não me parecem razoáveis ou, ao menos, convincentes, máxima vênia, para afastar o Fato do Príncipe.
Primeiramente, no que tange ao primeiro argumento, note-se que doutrina e jurisprudência nunca se utilizaram de tal separação entre ato discricionário e ato vinculado, para se verificar a aplicação da teoria do Fato do Príncipe, isto é, nunca foi feita a referida diferenciação doutrinária para a caracterização da responsabilidade do Estado. Todavia, ainda que se utilize essa diferenciação, há dúvidas se a determinação de paralisação do estabelecimento era um ato vinculado, de modo que a própria lei 13.979/2020 utiliza o termo “poderão”, havendo nítida faculdade no ato do Estado, tanto é que alguns países não utilizaram a referida medida, embora seja a recomendação da OMS. Importante também salientar, neste ponto, que até o presente momento não há qualquer estudo científico que ateste a técnica do isolamento e sua eficácia para a contenção do COVID-19.
A alegação de que o ato foi no sentido de interesse geral da coletividade, também não me parece afastar o Fato do Príncipe. Inúmeros exemplos nos mostram que mesmo os atos de interesse da coletividade também geram o dever de indenizar do Estado, constituindo sua responsabilidade por ato lícito, como prevê a Constituição Federal.
Além disso, mesmo se considerássemos que somente haveria o Fato do Príncipe se a medida alcançasse determinado setor da sociedade, ferindo o princípio da isonomia, é evidente que existe um rol de atividades essenciais enorme que ficou excluído do ato do Estado, de modo que, em princípio, não pode ser considerado um ato geral, mas, sim, específico.
Cumpre destacar, ainda que, o Fato do Príncipe é uma espécie de força maior. É certo que ele é perfeitamente aplicável à atual situação, isto porque o ato estatal gerou um desequilíbrio econômico e causou prejuízos a inúmeras empresas, provocando, em não raros casos, o encerramento de suas atividades. Vale dizer que tal elemento é inerente à caracterização do Factum Principis, pois, como já colocado, mesmo diante de ato lícito da administração pública, há a obrigação do Estado em indenizar, de maneira que os argumentos de ato vinculado não se sustentam.
É mister ressaltar que, nitidamente, nem todos os empresários foram afetados, até porque há uma disparidade imensa em atividades essenciais assim consideradas pelo governo federal, estados e municípios. Ora, pensar em Igrejas (que sequer exercem atividade econômica) e lotéricas, como atividades essenciais não me parece razoável, respeitando entendimentos contrários.
Ademais, cumpre salientar que a Constituição Federal, em seu artigo 37, §6º, não traz a regra de que a administração pública apenas responde em caso de ato ilícito. Logo, entendo perfeitamente possível a responsabilidade do Estado, ainda que em face de ato considerado lícito, sendo tal diferenciação irrelevante. O ato que vivenciamos atualmente, sendo lícito ou não, causa repercussão jurídica e econômica, ocasionando um imenso desequilíbrio financeiro e econômico dos empregadores no país.
Nem se cogite da aplicação do princípio da alteridade, a resultar na teoria do risco do empregador. Com efeito, por esta concepção, tudo que está ocorrendo, neste grave momento que atravessa a humanidade, estaria inserido no risco da atividade econômica. Ao reverso, a pandemia do COVID-19 escapa a qualquer previsibilidade dos empresários, não estando, portanto, abarcada no risco da atividade, posto que o empregador não contribuiu de forma alguma para sua ocorrência.
Destaca-se que própria CLT trouxe a opção excepcional de o Estado responder pelo seu ato de paralisação temporária ou definitiva que impossibilite a continuação da atividade empresarial, sendo certo afirmar que os empresários afetados estão impossibilitados de continuar sua atividade por ausência de recursos financeiros em decorrência da aludida interrupção imposta, ainda que de forma lícita.
Portanto, me parece, afigura-se aqui o Fato do Príncipe, em primeiro lugar, porque além da doutrina e jurisprudência não diferenciarem ato vinculado e ato discricionário da administração pública para aplicação desta teoria, é plenamente possível verificar uma discricionariedade do Estado em optar pela paralisação, até pelo fato de a lei 13.979/2020 utilizar da expressão “poderão” em seu art. 1º. Ressalte-se, outrossim, que inúmeros países (como Coreia do Sul e Japão) não utilizaram a estratégia do isolamento social, porquanto não há qualquer estudo científico concreto embasando tal medida, o que a torna uma opção do Estado, de modo que inexiste comprovação efetiva da medida de isolamento, até o presente momento.
Além disso, divirjo do entendimento de que o ato tenha um caráter geral e que isto, por si só, afastaria o Fato do Príncipe. Com efeito, além do rol das atividades essenciais ser divergente quando analisados os diferentes atos (nas esferas federal, estadual e municipal), verifica-se que, além disto, é muito abrangente, trazendo dúvidas acerca de algumas ou das muitas atividades tidas como tal.
Quanto ao argumento de estado de necessidade, reporto-me ao primeiro ponto favorável, ou seja, embora haja recomendação da OMS para a adoção do isolamento, é nítido que sua determinação depende dos Estados soberanos. Além disto, em face da ineficiência da administração pública em adotar outras formas de combate e controle do COVID-19, simplesmente transfere ao particular todo o ônus de sua atitude conveniente e opcional em paralisar temporariamente algumas atividades.
E note-se que o Estado assim age, não somente em prol da sociedade, mas sobretudo em benefício próprio, vez que, por sua falha em vários aspectos de gestão, opta pela forma que lhe seja menos onerosa.
Por fim, estamos diante de uma pandemia mundial sem precedentes no último século e, portanto, não se pode buscar interpretações sobre casos semelhantes ou completamente diferentes, ao passo que, como não há registros históricos recentes na história da humanidade de algo similar, não haverá precedente jurídico adequado para solução deste conflito atual, o qual impacta diversas áreas do Direito. Ora, se estamos diante de fatos sem precedentes, as interpretações necessitam ser realizadas da mesma forma, qual seja, sem vinculação com fatos completamente díspares e diversos do que vivenciamos.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo : Malheiros Editores, 2009.
[2] MOREIRA NETTO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Editora Forense, 2009, p. 191
Dhiego Tadeu Rijo Moura. Advogado trabalhista. Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo – FDSBC. Presidente da Comissão de Direito Material e Processual do Trabalho da OAB – Subseção Santo André. Pós-graduando em Direito e Relações do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas – FGVLAW. Monitor de Direito do Trabalho I da FDSBC sob coordenação do Professor Marcelo José Ladeira Mauad. Escritor de artigos científicos. Sócio fundador e responsável pela área trabalhista do Escritório Rijo & Dalcorso Advogados Associados.