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28 | abril | 2020

Coronavírus e os impactos trabalhistas

Atualmente, o mundo enfrenta um momento dramático e excepcional, surpreendido com a pandemia do COVID-19, conhecido também por Coronavírus.

Neste cenário, o Brasil vive, juntamente com a crise do sistema de saúde pública e privada, enorme dificuldade e recessão econômica, considerando as determinações governamentais de quarentena e isolamento social, o que impacta diretamente as relações de trabalho, de modo que muitos estabelecimentos comerciais, e outros mais, encontram-se fechados temporariamente por decretos de governos municipais e estaduais, além daqueles com movimento extremamente reduzido.

Dessa forma, questões práticas trabalhistas vieram à tona e causam atualmente enormes discussões no campo empresarial, sindical e jurídico, a respeito de alternativas no momento excepcional que o País vive, momento esse desconhecido na história recente do mundo. Há de se destacar que é inescapável a preocupação de inúmeros empresários brasileiros, notadamente diante da queda do movimento comercial existente e, até mesmo, diante do encerramento das atividades comerciais em alguns setores, como, por exemplo, o comércio, em especial, lojistas de shoppings centers, os primeiros afetados com as medidas de isolamento, tendo em vista a inerente aglomeração de pessoas em tais ambientes.

Por outro lado, ressalte-se também a angústia dos milhares de trabalhadores que dependem de sua renda para a própria subsistência (e de seus familiares e dependentes), sendo correto afirmar que grande parte das famílias brasileiras sobrevive com menos de dois salários mínimos mensais e, portanto, depende única e exclusivamente do salário para a manutenção e sobrevivência da entidade familiar.

Pois bem, diante deste cenário, o Governo Federal editou a Medida Provisória 927/2020, em 22 de março de 2020, a qual trouxe – ou buscou trazer – algumas alternativas aos empresários para adequar ou amenizar os prejuízos diante do estado de força maior reconhecido na aludida lei, bem como editou a Medida Provisória 936/2020, em 1º de abril de 2020, a qual institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (PEMER) e dispõe sobre três figuras, quais sejam: Suspensão do contrato de trabalho, redução de salário e jornada e suspensão do contrato de trabalho para realização de cursos à distância.

A ementa da Medida Provisória 927/2020, traz que seu objetivo é autorizar medidas e alternativas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, decorrente do COVID-19.

Primeiramente, destaca-se que a crise enfrentada atualmente – reconhecida em todo o mundo – pode e será superada com a atuação de três atores indispensáveis, quais sejam, os empregadores, empregados e o próprio Governo Federal, formando um tripé essencial para a superação deste momento.

De antemão, cumpre salientar que aludida Medida Provisória pecou ao não prever uma participação efetiva e eficaz do Governo a fim de auxiliar os demais atores sociais.

Ademais, o artigo 2º da Medida Provisória 927/2020 dispõe que o acordo individual escrito (Empregado – Empregador) prevalece sobre qualquer outra norma, inclusive os instrumentos coletivos e demais leis ordinárias, mesmo aquelas que não dispõem sobre direitos e obrigações, desde que estejam dentro dos limites da Constituição Federal. Neste ponto, importante lembrar que, já em 2017, a Lei 13.467/17 (intitulada “Reforma Trabalhista”) trouxe importante novidade legislativa como o artigo 611–A introduzido na CLT, no sentido de que o negociado prevalece sobre o legislado, isto é, a convenção, ou o acordo coletivo de trabalho, prevalece sobre a lei, excetuadas as hipóteses do artigo 611 – B da CLT, também nela inserido pela indigitada reforma laboral.

Desta forma, de plano, evidencia-se conflito entre as normas do artigo 2º da Medida Provisória 927/2020 e do artigo 611-A da CLT, este, como dito, a prever a prevalência da norma coletiva sobre a lei, como também sobre os contratos individuais (artigo 444, da CLT).

Ao que parece, a Medida Provisória 927/2020 deve prevalecer, ao menos temporariamente – enquanto perdurar o estado de calamidade pública -, sobre o referido artigo 611-A, da CLT, com predominância do interesse individual. Tal interpretação parece-nos coadunar com o princípio da prevalência da saúde pública e do interesse coletivo (sociedade) sobre os interesses individuais, ou seja, princípio da prevalência do coletivo sobre o particular, da solidariedade, da preservação e função social da empresa, subprincípio da função social da propriedade (art. 170 da CF).

Cumpre destacar que neste momento a função social da empresa deve ser protegida e elevada a patamar essencial para a própria manutenção dos postos de trabalho, de forma que em um cenário pós pandemia, os postos de trabalho serão essenciais para a retomada do crescimento econômico.

Contudo, a questão não é tão simples. No Direito do Trabalho, a aparente contradição entre normas, a priori, é resolvida pelo princípio da norma mais favorável ao trabalhador, por ser a parte hipossuficiente da relação empregatícia. Desta feita, há de se adotar a ponderação de princípios, em consonância com o disposto na Constituição Federal de 1988, em especial seus artigos 7º e 8º, aliás como reconhece a própria Medida Provisória 927/2020 (artigo 2º).

Em caráter geral, nos parece que conflito de normas existente entre o caput do artigo 611-A da CLT e o artigo 2º da Medida Provisória 927/2020, deve ser resolvido com a prevalência do artigo 2º da Medida Provisória, levando-se em consideração que se vivencia uma situação emergencial, imprevisível e ainda excepcional de tudo que já foi vivido na história recente da humanidade, de força maior, decorrente da pandemia do COVID-19 e que o objetivo primordial é a proteção das empresas e dos postos de trabalho, sendo que a regra de exceção prevalece e a interpretação do Direito do Trabalho deve ser analisada sob outra perspectiva, de forma temporária.

Portanto, não mais prevalece, somente durante este período de calamidade pública, de acordo com o Decreto Legislativo 6 de 20 de março de 2020, o princípio da norma mais favorável ao empregado, o qual deve ser mitigado em favor de toda a sociedade, respeitados os limites da Constituição Federal.

Igualmente, há de ser relativizado momentaneamente o princípio da prevalência da norma coletiva e prestigiada a autonomia da vontade das partes por meio do ajuste escrito entre empregador e seus empregados (individualmente), salvo naquilo que pretender revogar direitos constitucionais ou ferir a Constituição ou em caso de comprovada coação, erro ou dolo, o que vicia o negócio jurídico.

Pois bem, diante desta explanação, e reafirmando a prevalência da Constituição Federal como bem destacou a própria Medida Provisória 927/2020 (artigo 2º), o acordo individual encontra alguns obstáculos, como no caso da redução de salário e de jornada, ainda que diante do estado de calamidade pública e força maior, considerando o disposto nos incisos VI e XIII, do artigo 7º, da Lei Magna.

Registre-se, outrossim, que o artigo 503, da CLT, não foi recepcionado pela Carta Constitucional, diante da previsão do artigo 7º, inciso VI, o qual introduz em nosso sistema jurídico o princípio da irredutibilidade salarial, salvo convenção ou acordo coletivo (mediante negociação coletiva). Há, entretanto, os que defendem que implicitamente a referida Medida Provisória 927/2020, autorizou tal medida diante do texto do artigo 2º, o que não nos parece razoável e nem mesmo de acordo com a Lei Maior, até porque a própria medida governamental, na parte final do mesmo artigo 2º, ressalva a prevalência constitucional.

Assim, o texto legal que autoriza a redução salarial com a redução da jornada de forma proporcional, mediante acordo individual entre as partes da relação empregatícia, é inconstitucional, sendo nulo, por consequência, o ajuste que vier a ser celebrado por escrito entre o empregador e seu empregado.

O artigo 7º, da Constituição Federal, dispõe de um rol de direitos mínimos assegurados aos trabalhadores, ou seja, garante um patamar mínimo civilizatório que não pode ser relativizado individualmente, diante da proteção oferecida pelo caput do artigo 7º da Carta da República, em especial quanto à redução de salário (inciso VI), fonte de subsistência do empregado e sua família.

Destaca-se que o direito à irredutibilidade salarial é tutela essencial da lei em proveito do trabalhador e verba de natureza alimentar (artigo 100, parágrafo 1º, da Constituição da República).

Não suficiente, cumpre dizer que o clássico princípio de direito civil do pacta sunt servanda (estabelece a força obrigatória dos pactos, contratos ou obrigações assumidos entre as partes), no Direito do Trabalho, como dispõe o artigo 468 da CLT, deve ser relativizado, pois qualquer modificação, direta ou indireta, que prejudique o empregado é nula de pleno direito.

Portanto, a melhor alternativa, caso seja necessária a redução de salário com diminuição da jornada, é a aplicação do artigo 7º, VI, combinado com o inciso XIII do mesmo artigo da Constituição Federal, mediante negociação coletiva (com a celebração de convenção ou acordo coletivo) com o sindicato da categoria, em face do interesse em adequar-se ao atual cenário de calamidade pública reconhecida, a fim de preservar a existência da empresa e manutenção dos postos de trabalho.

Releva notar, ainda, as previsões da Medida Provisória 936/2020, a qual trouxe expressamente a possibilidade de redução de jornada e salário por meio de acordo individual de trabalho, bem como tratou de outros temas, como suspensão do contrato de trabalho e a suspensão do contrato para em participação cursos, instituindo o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (PEMER), além de flexibilizar o título VI – “convenções coletivas de trabalho”, da CLT, dentre outras questões.

O artigo 617, da CLT, por sua vez, prevê os prazos de resposta das entidades sindicais dos trabalhadores, quando instados à referida negociação. Se necessário, durante a pandemia e estado de calamidade pública, poderá o grupo de trabalhadores notificar o sindicato, a federação ou a confederação, representativos de sua categoria profissional, ao mesmo tempo, para, em 4 (quatro) dias (como prevê a Medida Provisória 936/2020, artigo 17, inciso III), assumirem as negociações de redução de salário e jornada, sob pena de, no silêncio, ser entendido como recusa da entidade de classe e os trabalhadores prosseguirem na negociação pela comissão de negociação. Neste caso, em face da urgência, o prazo de oito dias previsto na CLT foi reduzido pela metade. Ademais, é razoável supor que a exigência de notificar as demais entidades sindicais (federação e confederação) após a recusa do sindicato pode ser realizado simultaneamente e não em ordem sucessiva. Com isso, atende-se ao comando constitucional de negociação coletiva, bem como a necessidade imperiosa que vive o empresário de redução de custos.

Outrossim, quanto à realização de assembleias, há de se observar o artigo 612 da CLT, a dispor sobre o quórum de participação dos trabalhadores, e, em face da urgência, poder-se-ia pensar em alternativas como o uso de recursos telemáticos, p. ex., com o uso de aplicativos, v.g., o WhatsApp, considerando a própria Medida Provisória 936/2020, artigo 17, inciso II, mecanismo já utilizado em algumas classes de trabalhadores. Outra saída seria prever que o negociado ficasse pendente de referendo em posterior assembleia, considerando sempre o princípio da boa-fé das partes nos contratos e acordos, levando-se em conta que todas as medidas visam à proteção da renda e manutenção dos postos de trabalho.

Note-se que, embora o Governo Federal tenha editado a Medida Provisória 936/2020, a qual, observadas regras específicas, prevê a redução de salário e jornada mediante acordo individual de trabalho, a Constituição brasileira assenta, em seu artigo 7º, inciso VI, a irredutibilidade salarial salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo. Já o inciso XIII do mesmo artigo prevê a redução de jornada também por meio de acordo ou convenção coletiva, de maneira que é inconteste que a Medida Provisória 936/2020 resvala diretamente no terreno da inconstitucionalidade, sobretudo por que o artigo 7º, caput, da lei maior busca assegurar um patamar mínimo civilizatório aos trabalhadores.

Assim, a meu sentir, mesmo diante de um estado de calamidade pública, considerando todo o sistema constitucional e ainda o sistema juslaboral, não há como validar, por meio de acordo individual, a redução de salário e jornada. Neste mesmo sentido, em decisão liminar ad referendum, o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade, nº 6.363/2020, de relatoria do Excelentíssimo Ministro Ricardo Lewandowski, nos traz:

Isso posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 11 da Medida Provisória 936/2020, de maneira a assentar que “[os] acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho […] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes. Solicitem-se informações à Presidência da República. Requisitem-se a manifestação do Advogado-Geral da União e o parecer do Procurador-Geral da República. Comunique-se, com urgência. Publique-se.(Grifamos).

Pois bem, em que pesem algumas lacunas criadas com a decisão, com a devida vênia, me parece que busca, de certa forma, dar um respaldo constitucional à questão dos acordos individuais para a redução do salário com a redução de jornada, sendo certo que a tese de que a redução de salário, por ser proporcional, não seria literalmente uma redução salarial, mas sim que o contrato de trabalho ordinário teria sido transformado em contrato de trabalho a tempo parcial, o famoso “part-time”, o que não me parece de acordo com o sistema constitucional, até por considerar o inciso XIII do artigo 7º, da Constituição Federal, mencionado anteriormente.

Obviamente, a decisão merece algumas ressalvas, em especial por incluir nesta obrigatoriedade de negociação coletiva a matéria de suspensão do contrato de trabalho, instituto que não é protegido constitucionalmente com a obrigatoriedade de acordo ou convenção coletiva, sendo certo que os empregadores e empregados podem negociar a suspensão de forma individual, todavia dentro dos limites do artigo 468 da CLT (desde que não haja prejuízos diretos ou indiretos ao trabalhador).

Não suficiente, a medida provisória reduziu pela metade os prazos do artigo 617 da CLT, bem como não abordou a hipótese de simples recusa, além das consequências de a entidade sindical não aceitar o acordo individual apresentado. E mais, não esclareceu se esta necessidade de anuência da entidade sindical é aplicável aos hipersuficientes, conforme previsão do artigo 444-A da CLT.

De outro lado, cuidou a decisão de adotar a teoria pela qual a Medida Provisória deve ser interpretada conforme a Constituição, desta forma evitando declará-la inconstitucional.

Ressalte-se, contudo, que a decisão liminar deve ser referendada pelo Pleno do STF, o qual analisará em mesa a questão debatida na ADI 6.363/2020.

Há que se ter cautela quanto à atuação dos sindicatos, os quais têm por dever permitir a atuar na negociação e buscar a preservação do emprego de milhões de trabalhadores, entendendo e se solidarizando com a atual situação das empresas, as quais que atravessam dificuldades econômicas graves, de forma que a boa-fé deve sempre nortear as relações.

Dessa forma, busca-se assegurar o equilíbrio entre as alternativas empresariais e a inescapável observância da Constituição da República, mantendo sempre o patamar mínimo civilizatório necessário aos trabalhadores e tendo em vista que as empresas precisam de proteção até para sobreviverem num momento tão grave como o atual. Obviamente todos perderão um pouco, sejam empregados ou empregadores, mas não menos certo é que a colaboração de toda a sociedade é fundamental, além da atuação urgente, efetiva e decisiva dos entes governamentais, formando-se, assim, o tripé de ação dos atores para afastar o risco de um desastre econômico neste período.


Dhiego Tadeu Rijo Moura. Advogado trabalhista. Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo – FDSBC. Presidente da Comissão de Direito Material e Processual do Trabalho da OAB – Subseção Santo André. Pós-graduando em Direito e Relações do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas – FGVLAW. Monitor de Direito do Trabalho I da FDSBC sob coordenação do Professor Marcelo José Ladeira Mauad. Escritor de artigos científicos. Sócio fundador e responsável pela área trabalhista do Escritório Rijo & Dalcorso Advogados Associados.

Foto Coronavírus e os impactos trabalhistas